A Guiné-Bissau está outra vez na boca do mundo pelas mesmas, bem
conhecidas razões. Porque é que este pequeno e paupérrimo país da
África Ocidental é tão propenso a golpes de Estado? A resposta que
muitos especialistas têm na ponta da língua é: a armadilha dos
militares. Mas eu suspeito que esta resposta seja apenas uma
meia-verdade.
Sim,
as forças armadas são uma bagunça. Durante muitos anos, elas
mantiveram uma perigosa promiscuidade com os políticos. Os políticos
usaram-nas para servir seus interesses cripto-partidários, e as
forças armadas, sentindo-se exageradamente importantes, usaram por
sua vez os políticos para defender os seus interesses, individuais
ou colectivos. Mas, como em qualquer relação promíscua, às vezes
as rupturas são dolorosas. Consequentemente, golpes de Estado -- bem
sucedidos, falhados ou presumidos -- atingiram o país em 1980, 1985,
1992, 1998, 2000, 2004, 2009, 2010 e 2012. A contagem é pesada.
Estes
soldados desprovidos de formação são simples profissionais da
guerra -- e não mais do que isso. Eles nunca tiveram oportunidades
económicas para se integrarem na vida civil, e o poder político
pouco fez para os educar e capacitar, nem tão pouco para transformar
o exército de guerrilheiros em forças armadas disciplinadas,
modernas e republicanas. Como resultado, eles tornaram-se um perigo
para a sociedade.
A
guerra civil de 1998-99 foi a gota de água que fez transbordar o
copo: pela primeira vez o poder político e os parceiros de
desenvolvimento colocaram a reforma do exército no topo da agenda
política e de desenvolvimento. Mas os esforços de reforma até aqui
falharam. O Banco Mundial financiou um Projecto de demobilização em
1999. O projecto desmobilizou centenas de soldados, mas o número
total de soldados continuou a aumentar à medida que novos indivíduos
se juntavam ao exército em resultado de novos conflitos. A história
mais recente é o programa de reforma patrocinado pela União
Europeia, que acabou por ser um retumbante fracasso, com a UE e o
governo a acusarem-se mutuamente pelos maus resultados.
Na
minha opinião, a razão fundamental destes fracassos se resume a
esta simples frase: falta de dinheiro. E a este respeito, a
comunidade internacional encaixa a maior parte da responsabilidade.
Ela nunca colocou em cima da mesa o dinheiro realmente necessário
para "comprar" a estabilidade. Sim, a paz e a estabilidade
têm o seu preço. Com o tempo, os custos de oportunidade da reforma
dispararam à medida que o país caía na armadilha do tráfico de
drogas - e elementos proeminentes do exército se envolviam nesse
negócio. Com efeito, porque é que um general irá ficar em casa se
ele pode ganhar muito dinheiro fácil do tráfico de drogas?
Que
solução então? Eu penso que ela passa pela CEDEAO. Ela é a
organização mais bem posicionada hoje para oferecer uma solução
para esta crise. Porque é geográfica e economicamente a que mais se
identifica com a Guiné-Bissau; porque conhece a realidade do país;
porque ela granjeou alguma credibilidade na resolução de conflitos
recentes na sub-região; e, finalmente, porque nesses processos ela
adquiriu alguma experiência. Mas seria importante que a CEDEAO
oferecesse à Guiné-Bissau soluções sustentáveis de longo prazo,
e não as mesmas soluções voláteis de curto prazo, como tem
acontecido até aqui com outras crises no país. E isso começa com a
garantia da presença de uma força militar da CEDEAO na Guiné-Bissau
para proteger as instituições, treinar o exército e garantir uma
transição política suave. A CEDEAO também deve ajudar a mobilizar
suficientes recursos financeiros para, finalmente, concluir o
processo de reforma das forças armadas. Não se pode esperar que os
magros recursos que têm sido colocados até agora em cima da mesa,
façam os homens armados ir para casa.
Mas
se a reforma das forças de defesa e de segurança é fundamental
para a estabilidade política, há um outro pilar crucial que deve ir
em paralelo: a
justiça.
A denegação da justiça e a impunidade têm sido a regra na
Guiné-Bissau, particularmente com relação aos crimes políticos.
Embora o fenómeno não seja novo, o que impressiona mais é o
acumular recente de casos não resolvidos de relevante interesse
público. Tenho em mente o duplo assassinato do Chefe do Estado Maior
das Forças Armadas e do presidente Vieira em 2009, bem como o
assassinato de outras figuras políticas em 2010.
Na
consciência colectiva dos guineenses, o país está perigosamente a
escorregar para o "reino da impunidade ", com o poder
político a não conseguir - ou a não estar interessado – em ver
os crimes julgados ou esclarecidos. O resultado óbvio junto da
população é a sensação psicológica da exposição ao arbitrário
que pode empurrar as pessoas para a esfera perigosa da justiça
privada.
As
leis, os tribunais e os juízes estão lá, mas a justiça é
notavelmente ausente. Uma rápida reforma do sistema de justiça é
fundamental, e talvez uma espécie de "Plano Marshal " para
a justiça seja necessário para desbloquear o seu funcionamento. No
curto prazo, isto é mais importante do que organizar novas eleições.
E várias organizações internacionais podem ajudar nesse sentido,
incluindo as Nações Unidas, o PNUD e o Banco Mundial, para citar
apenas algumas.
Finalmente,
há o tráfico
de drogas
que se tornou o rótulo do país. Mesmo que o fenómeno seja
omnipresente em toda a região da África Ocidental, a Guiné-Bissau
tem sido destacada como um “Narco Estado ". Isso em parte
porque é um Estado frágil com recursos muito limitados para
combater os gangues, e em parte porque elementos presumivelmente
poderosos da hierarquia militar e política do país estão
envolvidos nesse tráfico. O combate ao tráfico de droga requer
meios que a Guiné-Bissau sozinha não possui. O apoio externo
necessário poderia vir, mais uma vez, da CEDEAO como parte do
mandato da sua força, apoiada por outras organizações regionais e
internacionais.
Por
conseguinte: exército,
justiça e tráfico de drogas.
Qualquer roteiro para a estabilização política da Guiné-Bissau
deve circular em torno deste triângulo
do mal.
Mas na minha opinião, a passagem deste roteiro para a prática
exigirá duas condições: liderança e tempo.
Neste
novo ciclo de transição em que a Guiné-Bissau está a entrar uma
escolha bem-sucedida dos seus novos líderes é fundamental. Eu
defendo que o Presidente deve ser designado com respeito pela
Constituição, e que deve ser nomeado uma personalidade credível
para liderar um governo de transição, um homem ou mulher que reúne
consenso, é respeitado por todas as partes, e que beneficia da
confiança de todos os diferentes grupos, incluindo o exército, os
políticos e os membros da sociedade civil, a fim de navegar no
complexo processo político de transição.
A
segunda condição é o tempo: os três elementos que formam o
triângulo
do mal devem
ser resolvidos dentro do prazo do período de transição. Eleições
justas e transparentes serão mais bem aceites por todos quando
houver um exército republicano, uma justiça funcional e um país
livre do tráfico de drogas. Isto pode requerer mais de um ano,
provavelmente dois a três anos. Este calendário vale a pena. A
comunidade internacional deve evitar cair na armadilha da sua receita
convencional: "a corrida às eleições". Ela não resolveu
qualquer problema no passado. É pouco provável que vá resolver
desta vez.
Geraldo Martins
Geraldo Martins